Regressados ao escudo
Não é preciso procurar
muito para encontrarmos descrições feitas há uns quatro anos sobre as
implicações de Portugal abandonar o euro. No início da crise das dívidas
soberanas, era-nos dito que um regresso ao escudo teria custos brutais e
corresponderia a perdas nos salários e nas pensões na ordem dos 30%. Lidos
retrospectivamente, esses cenários chegam a ser comoventes.
Não me parece política,
social e economicamente viável uma saída do euro. Aliás, o drama que enfrentamos
é precisamente esse: o euro é uma armadilha da qual não há libertação possível.
Uma vez entrado, não mais se sai. Convenhamos que estamos face a um dilema
insuperável: Portugal não pode ficar no euro, mas também não pode sair do euro.
Se a permanência na união monetária, com as atuais regras, torna a nossa
dívida, de facto, insustentável, uma saída será tudo menos ordenada e trará
consigo um cenário de caos, que ninguém é capaz de antecipar.
Não deixa, no entanto,
de ser sintomático que, no já distante ano de 2009, quando os contornos do que
estaria para vir eram ainda indefinidos, nos fosse dito que não podíamos
abandonar a moeda única porque tal implicaria perdas salariais politicamente
inviáveis. Estávamos na altura em que, como disse Cavaco Silva, havia
“limites para os sacrifícios que se podem exigir ao comum dos
cidadãos". O que é que se passou entretanto?
Portugal empobreceu
muito, mas nem todos empobreceram. Desde 2010, altura em que a Europa de facto
mudou, até 2014, a redução
de rendimento médio real na função pública será de 25%;
no sector privado cerca de 20% e para os pensionistas entre 25 e 35%, consoante
falemos do regime geral ou da CGA. Já agora, convém recordar, os salários foram
cortados, entre outros motivos, para garantir que o emprego fosse sustentável. Ora,
de uma taxa de desemprego de 10,8% em 2010 passámos para uma que se estima
seja, em 2013, de 17,4%. Ao que acresce que não só o número de desempregados
aumentou brutalmente, como a percentagem de desempregados protegidos tem diminuído
muito e continuará a diminuir. Em Agosto, de um total de 877 mil desempregados,
só 380 mil recebiam subsídio.
A conclusão é clara. Há
ganhadores e perdedores neste “ajustamento” e a “equidade na austeridade”,
tantas vezes invocada, não passa de um álibi demasiadamente tosco. A crise do euro
tem sido de facto instrumental para redistribuir poder em Portugal, favorecendo
uns e enfraquecendo a posição relativa de outros.
Da “reforma do Estado”
feita com notável incompetência às reformas estruturais salvíficas, a
consequência tem sido uma: os trabalhadores assalariados da classe média, os
funcionários públicos e os pensionistas já regressaram, silenciosamente, ao
escudo, enquanto o sector financeiro, os sectores rentistas e as empresas
exportadoras mantêm-se no euro, beneficiando dele, ainda que, em certos casos,
com dificuldades de acesso ao financiamento. Naturalmente que, para muitos, a
crise só pode mesmo ser encarada como uma oportunidade. Aliás, uma oportunidade
aguardada há muito tempo.
publicado no Expresso de 27 de Outubro
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