Um grande transformação de novo
É difícil encontrar entre os clássicos
do pensamento social outra obra tão adequada à compreensão dos nossos tempos
como “A Grande Transformação”, publicada por Karl Polanyi em 1944, e que acaba
de ser oportunamente editada em português. Com frequência lida como contraponto
ao determinismo económico de Marx e contrastando também com o optimismo com que
as visões liberais suas contemporâneas – nomeadamente as de von Mises e Hayek –
olhavam para a capacidade de autorregulação das economias de mercado, “A Grande
Transformação” apresenta uma tese inovadora sobre a natureza do capitalismo e o
modo como a economia de mercado se expandiu, contaminando com os seus
princípios toda a vida social e política.
A atualidade do pensamento de Polanyi é
evidente. Há uma década atrás, tenderíamos a afirmar que a história não havia
sido generosa com a interpretação que fez da evolução das economias de mercado
(na aparência, com o fim da era do ‘liberalismo encastrado’ de Bretton-Woods,
assistíamos a uma estabilização do capitalismo globalizado, autorregulado e
escassamente institucionalizado); mas hoje, após o desencadear da crise em
2008, com os abalos sísmicos vindos do sistema financeiro norte-americano, o
cenário é bem distinto: uma recessão profunda que afeta grande parte das
economias industrializadas, desequilíbrios sistémicos que aparentam não ter
resolução e uma subordinação política dos Estados-nação aos interesses do
sistema financeiro que tem poucos paralelos históricos. Aproximamo-nos, de
novo, do tempo que marcou Polanyi e influenciou o seu pensamento?
Polanyi fez parte da geração de
intelectuais emigrados da Mitteleuropa
para os Estados Unidos da América antes da Guerra e a sua integração, não sendo
um caso de notável sucesso, coloca-o ainda assim entre a minoria que teve
oportunidade de prosseguir uma carreira académica no ‘Novo Mundo’. A sua
história de vida partilha muitos dos traços dos seus contemporâneos oriundos
das fronteiras do que era o Império Austro-Húngaro.
Nascido em Viena em 1886, no seio da
burguesia judaica, migrou para Budapeste, onde se licenciou em direito. Toda a
sua formação acabaria por ser marcada pelo período politicamente tumultuoso que
caracterizou a Europa central do primeiro quartel do século XX: militante
socialista na adolescência, enquanto estudante universitário fundou uma
importante tertúlia intelectual em Budapeste (o ‘círculo Galileu’),
aproximou-se de grupos ‘socialistas liberais’, percursores do movimento
social-democrata, e mais tarde foi editor no primeiro semanário económico da
Europa Central. Pelo caminho, combateu e foi ferido durante a Grande Guerra.
Forjou a sua visão política através de um cruzamento singular entre socialismo
de matriz cristã, marginalismo de inspiração schumpeteriana e a ‘escola
histórica’ de Schmoller e Duhring, que sublinhava o papel do Estado na
institucionalização das variedades do capitalismo. No entanto, é só com o
exílio em Londres, onde viveria até ao início da II Guerra Mundial, antes de se
fixar definitivamente entre o Canadá e os Estados Unidos da América, que
consolida o seu pensamento.
Obra de maturidade e de grande fôlego,
redigida com o espectro da guerra a pairar, “A Grande Transformação” é uma
explicação analítica do desmoronamento civilizacional que então se vivia – daí
o subtítulo, “as origens políticas e económicas do nosso tempo” – e uma
tentativa de estabelecer as bases para um modelo de capitalismo sujeito a
formas de regulação políticas.
Estamos face a um livro complexo, no
qual o diálogo teórico se combina com digressões históricas e antropológicas
sobre a evolução das economias primitivas para as modernas economias de
mercado. Partindo de uma visão marcadamente multidisciplinar, Polanyi sustenta
que ‘a grande transformação’ consistiu na erosão das formas tradicionais de
institucionalização da economia e na emergência, no século XIX, dos mercados
como forma de regulação social hegemónica, mas historicamente contingente – com
um potencial revolucionário, capaz de desagregar todos os mecanismos
tradicionais de enraizamento social da economia.
Como é dito no excelente texto de
introdução à edição portuguesa,“a grande transformação teria consistido na
libertação dos mercados do controlo das instituições sociais e, ao invés, na
determinação da economia, das próprias instituições sociais e, tendencialmente,
de todos os aspectos da vida social e humana pelos padrões de troca mercantil”.
A tese inovadora de Polanyi é que a transição para uma economia de mercado
autorregulada é um produto de uma estratégia política, que encontrou nos
instrumentos do Estado moderno os meios adequados à sua concretização. Por isso
mesmo, é completamente improdutivo analisar a vida económica apenas através de
variáveis económicas e é fundamental compreender o contexto institucional,
social e político no qual a economia se encontra incrustada.
O livro organiza-se em torno de uma
questão, que não é independente do espírito do seu tempo: qual a razão para
que, após um período prolongado de paz e prosperidade, quando a Europa parecia
assentar em fundações sólidas, se tenha assistido a um conflito mundial, logo
seguido de uma profunda depressão económica?
Polanyi sugere que os vários
acontecimentos catastróficos que assolaram a Europa na primeira metade do
século XX não podiam ser vistos isoladamente. Pelo contrário, eram manifestações
de uma mesma tendência: a desagregação da unidade social causada pela
emergência da ‘sociedade de mercado’. A originalidade do argumento passa pelo
reconhecimento de que ‘a era dos extremos’ era produto unívoco de uma tendência
de desinstitucionalização das economias. Para Polanyi, a emergência do
fundamentalismo do mercado era uma ameaça existencial às fundações políticas
das sociedades abertas.
É neste sentido que Polanyi identifica um novo
mecanismo dialético – o ‘duplo movimento’ –, através do qual se vai procedendo
a uma alternância histórica entre controlo social da economia e controlo dos
mercados sobre a sociedade. Os totalitarismos eram lidos como um impulso
político que, sacrificando as liberdades, visava proteger a sociedade do mercado,
do falhanço do padrão-ouro como projeto de desinstitucionalização do
capitalismo. Mas era também este movimento dialéctico que criaria as condições
para que o capitalismo se pudesse salvar de si próprio, superando contradições
e promovendo uma reconciliação de classes. Como viria a acontecer no
pós-Guerra, através da politização da economia, com a consagração do Estado
Providência.
Como sustenta Joseph Stiglitz no
prefácio a esta edição, “acontece com frequência termos a impressão de que
Polanyi está a falar diretamente dos problemas de hoje”. É verdade. A páginas
tantas, Polanyi escreve que “o colapso do padrão-ouro internacional foi o elo
de ligação invisível entre a desintegração da economia mundial iniciada na
viragem do século e a transformação de toda uma civilização, que teria lugar
nos anos 30”. Substituamos padrão-ouro por ‘crise das dívidas soberanas’ e
acrescentemos Lehman Brothers como equivalente ao ‘crash bolsista’ e é bem
possível que tenhamos o retrato de uma sequência histórica catastrófica que
pode bem estar a repetir-se.
Ainda assim, convém ter presente que,
mesmo tendo sido escrito durante o mais sombrio dos tempos, em plena II Guerra
Mundial, “A Grande Transformação” preserva um assinalável otimismo histórico.
Para Polanyi, a ‘proteção da sociedade’ acabaria por imperar,
institucionalizando social e politicamente a economia de mercado. A previsão
revelou-se historicamente certeira, tendo em conta os ‘anos gloriosos’ de
economias de mercado incrustadas em instituições políticas e sociais nas
democracias liberais do pós-Guerra. Hoje, resta saber quais são os instrumentos
que podem tornar possível um novo momento dialético, corretor dos
desequilíbrios sistémicos que enfrentamos, e que coligação de classes se
formará para os tornar exequíveis. Infelizmente, Polanyi nada nos diz sobre
esta nova fase do capitalismo.
publicado no Atual do Expresso de 1 de Dezembro
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