quinta-feira, dezembro 27, 2012

Um grande transformação de novo


É difícil encontrar entre os clássicos do pensamento social outra obra tão adequada à compreensão dos nossos tempos como “A Grande Transformação”, publicada por Karl Polanyi em 1944, e que acaba de ser oportunamente editada em português. Com frequência lida como contraponto ao determinismo económico de Marx e contrastando também com o optimismo com que as visões liberais suas contemporâneas – nomeadamente as de von Mises e Hayek – olhavam para a capacidade de autorregulação das economias de mercado, “A Grande Transformação” apresenta uma tese inovadora sobre a natureza do capitalismo e o modo como a economia de mercado se expandiu, contaminando com os seus princípios toda a vida social e política.
A atualidade do pensamento de Polanyi é evidente. Há uma década atrás, tenderíamos a afirmar que a história não havia sido generosa com a interpretação que fez da evolução das economias de mercado (na aparência, com o fim da era do ‘liberalismo encastrado’ de Bretton-Woods, assistíamos a uma estabilização do capitalismo globalizado, autorregulado e escassamente institucionalizado); mas hoje, após o desencadear da crise em 2008, com os abalos sísmicos vindos do sistema financeiro norte-americano, o cenário é bem distinto: uma recessão profunda que afeta grande parte das economias industrializadas, desequilíbrios sistémicos que aparentam não ter resolução e uma subordinação política dos Estados-nação aos interesses do sistema financeiro que tem poucos paralelos históricos. Aproximamo-nos, de novo, do tempo que marcou Polanyi e influenciou o seu pensamento?
Polanyi fez parte da geração de intelectuais emigrados da Mitteleuropa para os Estados Unidos da América antes da Guerra e a sua integração, não sendo um caso de notável sucesso, coloca-o ainda assim entre a minoria que teve oportunidade de prosseguir uma carreira académica no ‘Novo Mundo’. A sua história de vida partilha muitos dos traços dos seus contemporâneos oriundos das fronteiras do que era o Império Austro-Húngaro.
Nascido em Viena em 1886, no seio da burguesia judaica, migrou para Budapeste, onde se licenciou em direito. Toda a sua formação acabaria por ser marcada pelo período politicamente tumultuoso que caracterizou a Europa central do primeiro quartel do século XX: militante socialista na adolescência, enquanto estudante universitário fundou uma importante tertúlia intelectual em Budapeste (o ‘círculo Galileu’), aproximou-se de grupos ‘socialistas liberais’, percursores do movimento social-democrata, e mais tarde foi editor no primeiro semanário económico da Europa Central. Pelo caminho, combateu e foi ferido durante a Grande Guerra. Forjou a sua visão política através de um cruzamento singular entre socialismo de matriz cristã, marginalismo de inspiração schumpeteriana e a ‘escola histórica’ de Schmoller e Duhring, que sublinhava o papel do Estado na institucionalização das variedades do capitalismo. No entanto, é só com o exílio em Londres, onde viveria até ao início da II Guerra Mundial, antes de se fixar definitivamente entre o Canadá e os Estados Unidos da América, que consolida o seu pensamento.
Obra de maturidade e de grande fôlego, redigida com o espectro da guerra a pairar, “A Grande Transformação” é uma explicação analítica do desmoronamento civilizacional que então se vivia – daí o subtítulo, “as origens políticas e económicas do nosso tempo” – e uma tentativa de estabelecer as bases para um modelo de capitalismo sujeito a formas de regulação políticas.
Estamos face a um livro complexo, no qual o diálogo teórico se combina com digressões históricas e antropológicas sobre a evolução das economias primitivas para as modernas economias de mercado. Partindo de uma visão marcadamente multidisciplinar, Polanyi sustenta que ‘a grande transformação’ consistiu na erosão das formas tradicionais de institucionalização da economia e na emergência, no século XIX, dos mercados como forma de regulação social hegemónica, mas historicamente contingente – com um potencial revolucionário, capaz de desagregar todos os mecanismos tradicionais de enraizamento social da economia.
Como é dito no excelente texto de introdução à edição portuguesa,“a grande transformação teria consistido na libertação dos mercados do controlo das instituições sociais e, ao invés, na determinação da economia, das próprias instituições sociais e, tendencialmente, de todos os aspectos da vida social e humana pelos padrões de troca mercantil”. A tese inovadora de Polanyi é que a transição para uma economia de mercado autorregulada é um produto de uma estratégia política, que encontrou nos instrumentos do Estado moderno os meios adequados à sua concretização. Por isso mesmo, é completamente improdutivo analisar a vida económica apenas através de variáveis económicas e é fundamental compreender o contexto institucional, social e político no qual a economia se encontra incrustada.
O livro organiza-se em torno de uma questão, que não é independente do espírito do seu tempo: qual a razão para que, após um período prolongado de paz e prosperidade, quando a Europa parecia assentar em fundações sólidas, se tenha assistido a um conflito mundial, logo seguido de uma profunda depressão económica?
Polanyi sugere que os vários acontecimentos catastróficos que assolaram a Europa na primeira metade do século XX não podiam ser vistos isoladamente. Pelo contrário, eram manifestações de uma mesma tendência: a desagregação da unidade social causada pela emergência da ‘sociedade de mercado’. A originalidade do argumento passa pelo reconhecimento de que ‘a era dos extremos’ era produto unívoco de uma tendência de desinstitucionalização das economias. Para Polanyi, a emergência do fundamentalismo do mercado era uma ameaça existencial às fundações políticas das sociedades abertas.
 É neste sentido que Polanyi identifica um novo mecanismo dialético – o ‘duplo movimento’ –, através do qual se vai procedendo a uma alternância histórica entre controlo social da economia e controlo dos mercados sobre a sociedade. Os totalitarismos eram lidos como um impulso político que, sacrificando as liberdades, visava proteger a sociedade do mercado, do falhanço do padrão-ouro como projeto de desinstitucionalização do capitalismo. Mas era também este movimento dialéctico que criaria as condições para que o capitalismo se pudesse salvar de si próprio, superando contradições e promovendo uma reconciliação de classes. Como viria a acontecer no pós-Guerra, através da politização da economia, com a consagração do Estado Providência.
Como sustenta Joseph Stiglitz no prefácio a esta edição, “acontece com frequência termos a impressão de que Polanyi está a falar diretamente dos problemas de hoje”. É verdade. A páginas tantas, Polanyi escreve que “o colapso do padrão-ouro internacional foi o elo de ligação invisível entre a desintegração da economia mundial iniciada na viragem do século e a transformação de toda uma civilização, que teria lugar nos anos 30”. Substituamos padrão-ouro por ‘crise das dívidas soberanas’ e acrescentemos Lehman Brothers como equivalente ao ‘crash bolsista’ e é bem possível que tenhamos o retrato de uma sequência histórica catastrófica que pode bem estar a repetir-se.
Ainda assim, convém ter presente que, mesmo tendo sido escrito durante o mais sombrio dos tempos, em plena II Guerra Mundial, “A Grande Transformação” preserva um assinalável otimismo histórico. Para Polanyi, a ‘proteção da sociedade’ acabaria por imperar, institucionalizando social e politicamente a economia de mercado. A previsão revelou-se historicamente certeira, tendo em conta os ‘anos gloriosos’ de economias de mercado incrustadas em instituições políticas e sociais nas democracias liberais do pós-Guerra. Hoje, resta saber quais são os instrumentos que podem tornar possível um novo momento dialético, corretor dos desequilíbrios sistémicos que enfrentamos, e que coligação de classes se formará para os tornar exequíveis. Infelizmente, Polanyi nada nos diz sobre esta nova fase do capitalismo. 
publicado no Atual do Expresso de 1 de Dezembro