O Estado paralelo
Se fizermos o exercício
exigente de procurar racionalidade na ação deste Governo, talvez seja possível
identificar dois momentos no processo de “reforma” do Estado. Num primeiro, o
objectivo essencial era deslegitimar a ação do Estado, tornando-a
crescentemente ineficaz; num segundo, com um contexto mais propício ao seu
desmantelamento, ficaria aberta a porta à criação de novos mercados - na saúde,
educação e segurança social.
Num primeiro momento, não
era necessário guião nenhum. De facto, só quem pretende construir alguma coisa
precisa de um guia que indique o caminho; como é sabido, para destruir não são
necessárias instruções. Um pouco como quando construímos um LEGO. Apenas com
instruções as peças fazem sentido e somos capazes de visualizar o resultado
final, mas quem tenha visto uma criança
a desmanchar um LEGO sabe bem que, nessa altura, o manual de instruções é
desnecessário.
Foi isso mesmo que se fez
nos últimos dois anos. Cortes sem critério e total paralisia de sectores fundamentais
do Estado, nomeadamente da administração central. Com consequências conhecidas:
a confiança dos cidadãos no Estado desapareceu e, não menos importante,
acelerou-se como nunca o processo de degradação do saber instalado na
administração pública. Com um Estado deslegitimado e descapitalizado, ficámos
todos mais frágeis.
Mas se um LEGO destruído é,
desde que tenhamos o guião certo, reconstruível, já a confiança e a capacidade
institucional são irrecuperáveis. Uma vez destruídas torna-se muito difícil reconstruí-las.
E assim chegámos ao segundo
momento. Entre a indigência intelectual e política que marcam o guião
apresentado por Paulo Portas (que provoca vergonha alheia), emerge uma ideia
paradoxal. O mesmo Governo que prometeu combater o “Estado paralelo” tem como
objectivo criar um universo de mercados, dependentes do Orçamento de Estado,
que passaria a prestar serviços até aqui assegurados pelo Estado.
Estamos perante uma proposta
de reforma que visa, de facto, fazer crescer exponencialmente o Estado paralelo.
Da saúde à educação, passando pela segurança social, a ideia é sempre a mesma:
contratualização de serviços públicos com privados, assegurando o financiamento
público de negócios privados.
Esse Estado paralelo já
existe hoje em Portugal e o que o caracteriza é a pouca transparência e a
ausência de regulação e escrutínio. Sabemos que, nas funções sociais, todos os
anos são transferidos do Estado para entidades (para)privadas milhões de euros.
Mas sabemos pouco sobre a eficiência com que os recursos são aplicados, o
controlo das contas é menor do que na administração pública e a gestão dos
recursos humanos assenta em princípios demasiado flexíveis.
Para início de conversa em
torno da reforma do Estado, talvez valesse a pena fazer uma avaliação rigorosa
do que se passa neste Estado paralelo –formado por escolas, creches, lares e
hospitais geridos privadamente mas financiados por recursos públicos. Mas pedir
estudo, avaliação e rigor a este Governo é, objectivamente, exigir de mais.
<< Home