Governar para dividir
Este
Governo apostou em ser uma versão extrema de uma tradição arreigada – pôr os
portugueses uns contra os outros para governar. Depois de opor trabalhadores
privados a funcionários públicos; agora, não ocorreu nada melhor ao executivo
do que pôr trabalhadores contra pensionistas.
Uma
das principais responsabilidades de um Governo é ser um factor de segurança.
Num momento como aquele que vivemos, esta asserção é mais verdadeira. As declarações
de Passos Coelho têm tido o condão de gerar incerteza entre os portugueses, mas
são, no essencial, um retrato de um estilo. Por um lado, a ação política assente
num objectivo paradoxal – governar para dividir –, por outro, a sensação de que
nos condenaram a sermos governados pelo líder de uma juventude partidária.
O
discurso das ‘pensões milionárias’ parece saído de um manual sobre como
conquistar jotas. No estilo, na superficialidade e na retórica politicamente
perigosa. Com uma diferença: feito por um congressista da JSD o seu efeito
seria praticamente nulo; proferido por um primeiro-ministro, o caso muda de
figura.
O
estilo não engana. Para quem se habituou a fazer carreira política através de
sucessivos realinhamentos tácticos, não espanta que, no momento em que se ficou
a saber que Cavaco Silva tinha dúvidas quanto à constitucionalidade do
orçamento, se aproveite para dar uma “canelada” no pensionista que é
Presidente.
Mas a ligeireza com que se aborda um
tema muito sensível é ainda mais reveladora. Vale a pena relembrar que todas as
pensões acima de 1350 euros são penalizadas no orçamento e que o sistema
previdencial não só não está falido, como tem excedentes, que contribuem todos
os anos para a consolidação das contas públicas.
Finalmente a solidariedade intergeracional.
O primeiro-ministro parece ter descoberto que “há pessoas que têm reformas
pagas por quem está a trabalhar” (sic). Não poderia ser de outra forma. Como o
nosso sistema é de repartição, os ativos de hoje pagam os benefícios dos ativos
de ontem. A este propósito, recorde-se que os sistemas de pensões financiados por
contribuições surgiram num determinado contexto e para desempenhar uma função.
No pós-Guerra, havia a convicção de que
o colapso bolsista era uma das causas da falência dos regimes liberais, daí que
se tenha assistido a uma retração generalizada dos esquemas de capitalização e
uma opção pela repartição. Para além do mais, eram necessárias políticas que
reconstruíssem os laços sociais entre cidadãos. Os sistemas de repartição
cumpriam esse duplo objectivo: responder às várias inseguranças que haviam
resultado na Guerra e criar uma comunidade política de pertença, assente na
solidariedade intergeracional.
Os sistemas de pensões devem ser reformados?
É o que tem acontecido e deve continuar a ser feito. Mas ganhamos
colectivamente alguma coisa com um anátema generalizado sobre carreiras
contributivas e fórmulas de cálculos? Não. Aliás, é uma forma de, ao mesmo
tempo que se dilui a solidariedade entre portugueses, nada se fazer, de facto, para
garantir a sustentabilidade da segurança social.
publicado no Expresso de 22 de Dezembro
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