Linha de Fronteira
Há linhas de fronteira que, uma vez ultrapassadas, nos deixam num ponto sem retorno. A gestão meticulosa de escutas de processos judiciais faz parte duma crescente instrumentalização política da justiça portuguesa.
A questão não é nem o conteúdo das escutas, nem os protagonistas, é o facto de tolerarmos a sua divulgação, sejam elas de Pinto da Costa, de António Preto ou de Armando Vara. Quando se aceita comentar uma vez que seja, por força de uma avaliação subjectiva da relevância do seu conteúdo, escutas que não deveriam ser conhecidas, está-se a atravessar uma linha de fronteira. Com isso, contribui-se para o sucesso duma estratégia de judicialização da política que não resolverá nenhum dos problemas da nossa democracia, limitar-se-á a agravar todos eles.
E um dos problemas sérios que enfrentam as democracias é o da relação, desde sempre tensa e frequentemente perversa, entre poder político e media. Um domínio em que, paradoxalmente, o Governo Sócrates, ao mesmo tempo que deu passos no bom sentido (consolidando a estratégia de autonomização da RTP face ao poder político - quer do ponto de vista da gestão, quer do pluralismo noticioso), borra a pintura quando revela uma irritação inusitada pelo que de si é dito na comunicação social. Mas uma coisa é o ambiente de crispação entre Sócrates e os jornalistas, outra, bem diferente e com efeitos ainda mais gravosos, é o modo como se cruzam interesses políticos, com participações económicas e autonomia dos media. É um daqueles domínios em que não há, nem nunca houve inocentes, mas também nada impede que estejamos condenados a que assim seja.
A tentativa de compra da Media Capital pela PT deu, a este respeito, um péssimo sinal. Como aliás parecia ser consensual aquando da alienação da Lusomundo, a separação entre plataformas e conteúdos ia no bom sentido. O súbito retrocesso estratégico anunciado antes do Verão não encontrou nenhuma explicação plausível, pelo que a ideia que ficou a pairar é que tudo se resumia a uma vontade indomável de controlar um grupo de media através de uma empresa com uma ‘golden share' pública. Aliás, se o objectivo era tão estratégico, não se chega a perceber por que razão, uma vez abortado o negócio com a PRISA, não procurou a PT encontrar outra alternativa no mercado.
No fundo, tudo radica numa questão: garantido o serviço público e com uma entidade reguladora eficiente, há algum motivo para que o Estado se envolva directa ou indirectamente no negócio dos media? A resposta é não, o que serve também para revelar que, enquanto existir uma ‘golden share' na PT, estaremos sempre condenados à interferência política nos media. Não só não é esse o caminho para garantir o pluralismo como cria o caldo adequado para que interesses financeiros, pulsões controleiras de governantes e protagonistas do sub-mundo partidário se coliguem com efeitos devastadores para a qualidade da democracia.
publicado hoje no Diário Económico.
A questão não é nem o conteúdo das escutas, nem os protagonistas, é o facto de tolerarmos a sua divulgação, sejam elas de Pinto da Costa, de António Preto ou de Armando Vara. Quando se aceita comentar uma vez que seja, por força de uma avaliação subjectiva da relevância do seu conteúdo, escutas que não deveriam ser conhecidas, está-se a atravessar uma linha de fronteira. Com isso, contribui-se para o sucesso duma estratégia de judicialização da política que não resolverá nenhum dos problemas da nossa democracia, limitar-se-á a agravar todos eles.
E um dos problemas sérios que enfrentam as democracias é o da relação, desde sempre tensa e frequentemente perversa, entre poder político e media. Um domínio em que, paradoxalmente, o Governo Sócrates, ao mesmo tempo que deu passos no bom sentido (consolidando a estratégia de autonomização da RTP face ao poder político - quer do ponto de vista da gestão, quer do pluralismo noticioso), borra a pintura quando revela uma irritação inusitada pelo que de si é dito na comunicação social. Mas uma coisa é o ambiente de crispação entre Sócrates e os jornalistas, outra, bem diferente e com efeitos ainda mais gravosos, é o modo como se cruzam interesses políticos, com participações económicas e autonomia dos media. É um daqueles domínios em que não há, nem nunca houve inocentes, mas também nada impede que estejamos condenados a que assim seja.
A tentativa de compra da Media Capital pela PT deu, a este respeito, um péssimo sinal. Como aliás parecia ser consensual aquando da alienação da Lusomundo, a separação entre plataformas e conteúdos ia no bom sentido. O súbito retrocesso estratégico anunciado antes do Verão não encontrou nenhuma explicação plausível, pelo que a ideia que ficou a pairar é que tudo se resumia a uma vontade indomável de controlar um grupo de media através de uma empresa com uma ‘golden share' pública. Aliás, se o objectivo era tão estratégico, não se chega a perceber por que razão, uma vez abortado o negócio com a PRISA, não procurou a PT encontrar outra alternativa no mercado.
No fundo, tudo radica numa questão: garantido o serviço público e com uma entidade reguladora eficiente, há algum motivo para que o Estado se envolva directa ou indirectamente no negócio dos media? A resposta é não, o que serve também para revelar que, enquanto existir uma ‘golden share' na PT, estaremos sempre condenados à interferência política nos media. Não só não é esse o caminho para garantir o pluralismo como cria o caldo adequado para que interesses financeiros, pulsões controleiras de governantes e protagonistas do sub-mundo partidário se coliguem com efeitos devastadores para a qualidade da democracia.
publicado hoje no Diário Económico.
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