Até aqui, tudo bem
Num conhecido filme francês da década de noventa, “O Ódio”, é-nos contada a história de um homem lançado do 50º andar de um arranha-céus e que para se reconfortar, enquanto cai, vai repetindo, como num mantra, “até aqui, tudo bem” – para logo concluir que o que importa não é a queda, mas, sim, a aterragem. Se pensarmos no que se anuncia economicamente, somos esse mesmo homem.
Na semana passada, o FMI reviu em baixa, uma vez mais, o cenário macroeconómico para Portugal e o problema não são propriamente os valores para 2012 – já previsivelmente maus –, mas o que se prevê para os anos seguintes, os tais do suposto “crescimento económico robusto” que se seguiria às reformas estruturais. Depois da queda do produto em 3,3% prevista para este ano, a nossa economia crescerá 2,1% em 2104, para começar a crescer menos logo a seguir, baixando para 1,5% em 2017. A tomar como bom este cenário, uma coisa resulta clara: os níveis de desemprego manter-se-ão muito elevados.
Não vale a pena iludir os constrangimentos financeiros que enfrentamos, mas convém ter consciência clara de que, como bem referiu Assunção Esteves no discurso das comemorações do 25 de Abril, “a democracia tem hoje a sua prova de fogo no bem-estar social e económico”. É uma ilusão pensar que tudo se manterá igual no sistema político com um período longo em que o comportamento da economia alterna entre o anémico e a recessão. Pura e simplesmente, o amor do povo pela liberdade não será suficiente para que daqui, por exemplo, a quatro anos, os portugueses se dirijam ordeiramente e em massa às urnas para depositar o seu voto nos partidos em que necessariamente deixarão de confiar. A queda que vivemos começou por ser financeira, económica e social, mas a aterragem será inevitavelmente política e colocará em causa o regime.
Como nos ensina a história europeia, a legitimidade dos regimes democráticos depende do pluralismo e da defesa do Estado de direito, mas estes valores só são politicamente sustentáveis se se alicerçarem em níveis de bem-estar suficientes, que funcionem como cimento das relações sociais. A questão não é apenas de privação material hoje, é também o modo como o regime gere expectativas sociais. Em “A classe média: ascensão e queda”, Elísio Estanque escreve que “enquanto numa trajectória ascensional se tende a antecipar a condição de chegada, na situação inversa procura-se a toda o custo negar a realidade, mesmo quando já se mergulhou nela até ao pescoço”. Ou seja, enquanto nas trajectórias ascendentes as expectativas vão sempre um passo à frente da posição individual, perante um fim abrupto desse percurso, a intensidade da frustração dispara, mas ao retardador. Um pouco como no filme de Mathieu Kassovitz: quando caímos, como agora acontece, primeiro negamos a sensação de perda, para depois chocarmos com a dura realidade da desilusão. Só então perceberemos que a solução para a crise deveria ter sido outra. Pode ser, contudo, demasiado tarde.
publicado no Expresso de 28 de Abril.
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