Eu tenho um sonho: a recessão
Se me perguntarem se conheço alguma explicação concisa da crise, tenho resposta pronta. Um vídeo de três minutos e meio, de um directo num noticiário da BBC, em que um corretor anónimo descreve, através de uma combinação lúcida de candura com ironia cínica, os mecanismos que regulam os mercados financeiros e o modo como estes se encarregarão de aprofundar a recessão.
Alessio Rastani, é este o nome e vale a pena ver o vídeo que esta semana se tornou viral. As lições não poderiam ser mais cruas. Perante uma jornalista boquiaberta, Rastani declara que a actual crise económica “é como um cancro. Se se limitarem a aguardar, esperando que ela se afaste, tal como um cancro, vai crescer e vai ser tarde de mais.” Esta afirmação, contudo, limita-se a assentar numa metáfora poderosa e pouco nos diz sobre a natureza da crise. É na explicação das causas do cancro que Rastani é particularmente mordaz.
O resumo dos postulados em que assentam os mercados financeiros assenta num primeira axioma: “os mercados são movidos pelo medo”. No que é uma evidência com forte suporte empírico, Rastani afirma que os grandes fundos não confiam nos pacotes de resgate, não se preocupam com o euro e antecipam um comportamento muito negativo dos mercados. Os investidores têm medo do cancro e é esse medo que os move. Mas se assim é, no fundo os mercados revelam lucidez – não se percebe como é que os sucessivos pacotes de austeridade na zona euro podem funcionar.
Depois, com um realismo desarmante, afirma que não há razões para estar optimista quanto à capacidade dos governos para lidarem com a situação: “os governos não mandam no mundo, quem manda é a Goldman Sachs.” E aqui Rastani talvez não tenha razão: é excessivo atribuir tanto poder a uma única instituição, quando um dos problemas actuais é a desinstitucionalização e fragmentação do poder.
Finalmente, deixa uma declaração que o transformou numa personificação do mal. Confessando-se pouco preocupado com o que pode ser feito, afirma que aguarda por este momento há três anos. Todos os dias quando se deita, sonha com uma nova recessão: “quando o euro e os grandes mercados bolsistas colapsarem, se souberes o que fazer, podes ganhar muito dinheiro. É preciso que as pessoas aprendam a ganhar dinheiro com um mercado em perda”.
Numa entrevista posterior à Forbes, Rastani confessou-se estupefacto com as ondas de choque da sua aparição televisiva – “eu estava convencido de que toda a gente tinha presente este tipo de coisas”. Pelos vistos, não. Até porque é difícil encontrar três minutos e meio tão eficazes na demonstração de que os mercados são agentes racionais (procuram maximizar as oportunidades de lucro) mas que da soma das suas acções não resulta nenhuma racionalidade (a natureza sistémica da crise) e de que a actos individuais racionais não correspondem necessariamente comportamentos movidos pela ética.
publicado no Expresso de 1 de Outubro
Alessio Rastani, é este o nome e vale a pena ver o vídeo que esta semana se tornou viral. As lições não poderiam ser mais cruas. Perante uma jornalista boquiaberta, Rastani declara que a actual crise económica “é como um cancro. Se se limitarem a aguardar, esperando que ela se afaste, tal como um cancro, vai crescer e vai ser tarde de mais.” Esta afirmação, contudo, limita-se a assentar numa metáfora poderosa e pouco nos diz sobre a natureza da crise. É na explicação das causas do cancro que Rastani é particularmente mordaz.
O resumo dos postulados em que assentam os mercados financeiros assenta num primeira axioma: “os mercados são movidos pelo medo”. No que é uma evidência com forte suporte empírico, Rastani afirma que os grandes fundos não confiam nos pacotes de resgate, não se preocupam com o euro e antecipam um comportamento muito negativo dos mercados. Os investidores têm medo do cancro e é esse medo que os move. Mas se assim é, no fundo os mercados revelam lucidez – não se percebe como é que os sucessivos pacotes de austeridade na zona euro podem funcionar.
Depois, com um realismo desarmante, afirma que não há razões para estar optimista quanto à capacidade dos governos para lidarem com a situação: “os governos não mandam no mundo, quem manda é a Goldman Sachs.” E aqui Rastani talvez não tenha razão: é excessivo atribuir tanto poder a uma única instituição, quando um dos problemas actuais é a desinstitucionalização e fragmentação do poder.
Finalmente, deixa uma declaração que o transformou numa personificação do mal. Confessando-se pouco preocupado com o que pode ser feito, afirma que aguarda por este momento há três anos. Todos os dias quando se deita, sonha com uma nova recessão: “quando o euro e os grandes mercados bolsistas colapsarem, se souberes o que fazer, podes ganhar muito dinheiro. É preciso que as pessoas aprendam a ganhar dinheiro com um mercado em perda”.
Numa entrevista posterior à Forbes, Rastani confessou-se estupefacto com as ondas de choque da sua aparição televisiva – “eu estava convencido de que toda a gente tinha presente este tipo de coisas”. Pelos vistos, não. Até porque é difícil encontrar três minutos e meio tão eficazes na demonstração de que os mercados são agentes racionais (procuram maximizar as oportunidades de lucro) mas que da soma das suas acções não resulta nenhuma racionalidade (a natureza sistémica da crise) e de que a actos individuais racionais não correspondem necessariamente comportamentos movidos pela ética.
publicado no Expresso de 1 de Outubro
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