domingo, março 13, 2011

Sabemos muito pouco

Há dias, o embaixador português descrevia a situação da Líbia como “muito melhor que nos países vizinhos”. É difícil encontrar exemplo mais acabado de distanciamento da realidade. É essa aliás a principal revelação dos eventos das últimas semanas: o Ocidente está refém de acontecimentos que não previu, é incapaz de influenciar e cujo desfecho é incerto.
No meio do desconhecimento, começa, ainda assim, a ser possível descortinar algumas explicações para o que tem acontecido, que permitem algumas lições.
Perante uma revolução, a tendência é procurar paralelismos e causas semelhantes em exemplos históricos. As revoluções árabes parecem resultar, em parte, da incapacidade dos regimes em gerirem expectativas crescentes. Aparentemente, o velho argumento de James C. Davies, que explicava as revoluções com base na ‘curva J’, voltou a ter aderência à realidade. Podemos mesmo estar perante frustração de expectativas depois de um período sustentado de crescimento. As economias cresceram bem acima do Ocidente, os regimes modernizaram-se, mas não o suficiente para redistribuir os ganhos, acentuando a sua ilegitimidade aos olhos de uma população jovem mais qualificada e com novos meios de mobilização política.
Descobrimos também que o mundo árabe é um sistema regional, com os acontecimentos num país a contaminarem o que se passa noutro país. Nessa perspectiva, como sublinhava Anne Applebaum no Washington Post, há paralelismos com o que se passou na Europa em 1848. Um conjunto de revoluções com aspirações semelhantes, mas objectivos distintos, explicações nacionais idiossincráticas e processos diferentes. Convém recordar, contudo, que as mudanças iniciadas em 1848 só se consolidaram meio século depois.
Tudo isto nos deve levar, antes de mais, a desconfiar de narrativas promovidas pelos regimes autoritários. A captura dos serviços de informação ocidentais pelos serviços locais de regimes amigos deixou-nos pendurados. Fomos comprando acriticamente a ideia de que, por um lado, ‘estava tudo calmo’ e, por outro, que depois de ditadores autocráticos chegaria o dilúvio. O que é estranho, porque já sabíamos, pelo menos desde a transição na Indonésia, que a uma autocracia pró-americana e anti-islâmica não tem necessariamente de se seguir uma ditadura não secular e fundamentalista.
O que serve para lembrar que o neo-conservadorismo tinha razão quando defendia que não podíamos abdicar de promover as liberdades. Como disse, um dia, Condoleeza Rice, “a América trocou liberdade por estabilidade e não teve nenhuma das duas”. O problema é que a imposição da liberdade à bomba, como biombo para esconder a defesa de interesses estratégicos em torno do petróleo, tornou, hoje, muito escassa a capacidade de influência dos EUA e da Europa.
Mas, a principal lição é mesmo que o Ocidente não se deve entreter a aprofundar relações com ditaduras. E quando isso acontece, precisamente em nome do realismo, é aconselhável procurar conhecer de facto as realidades locais. O indisfarçável entusiasmo comercial do Estado português com o regime brutal e bizarro de Kadhafi é, a este propósito, um aviso para o futuro. Precisamos de conhecer melhor o mundo antes de nos expormos tanto às suas contingências.

publicado no Expresso de dia 26 de Fevereiro