Estado Social, um obituário
Ao
longo de décadas de vida, o Estado Social foi fonte de segurança para gerações
de portugueses. Ainda assim, o seu desaparecimento esta semana, recebido com
pesar colectivo, não surpreende. Muito fragilizado por factores que escapavam
ao seu controlo (ex. arrefecimento económico e envelhecimento), não resistiu à
dor infligida por um diagnóstico combinado entre o Governo português e uma
instituição internacional.
A
simpatia com que era olhado por muitos portugueses assentava no facto de a sua
passagem à maturidade ter correspondido a uma melhoria significativa das
condições de vida de largos sectores da nossa sociedade, contribuindo pela sua
ação persistente para a formação de uma, ainda assim incipiente, classe média. A
expansão dos serviços por si oferecidos nas áreas da saúde e da educação foi,
aliás, um cimento fundamental para a consolidação da democracia.
É
difícil situar com exatidão o ano do seu nascimento, mas há um consenso
alargado que refere a sua natureza tardia entre nós. Com raízes na primeira
reforma do sistema corporativo em 1962, só se desenvolveu de forma robusta a
partir de 1974, maturando com a adesão europeia, em 1986. O seu primo alemão,
por exemplo, formou-se ainda sob a mão pesada de Bismarck, no final do século
XIX, como forma de conter as reivindicações operárias e como instrumento ao
serviço da criação de um novo Estado-nação. Já no Reino Unido, parente também
próximo, a sua expansão é filha da democracia e da ascensão política do partido
trabalhista, ainda que assente num relatório muito celebrado, elaborado por um
deputado liberal, William Beveridge.
A
sua morte provocou reações em todos os sectores da sociedade portuguesa. Em
comunicação ao país, o Presidente sublinhou o seu empenho pessoal no
desenvolvimento do Estado social, tendo ainda aproveitado para se declarar um
neokeynesiano. O primeiro-ministro, do que se percebeu, afirmou que estava a
governar para libertar a sociedade do Estado e que o Vítor tinha feito umas
contas, alavancadas pelo FMI, que confirmavam a inconstitucionalidade do
sistema. O terceiro declarou com voz pesarosa que era um democrata-cristão e que
uma morte destas, com o CDS no governo, não se voltaria a repetir. O líder do
PS, com grande responsabilidade, reiterou que sempre tinha afirmado que quando
chegasse ao Governo promoveria a ressurreição do Estado Social. PCP e BE
convergiram, sublinhando que desde 1975 avisavam que o Estado Social estava a
ser morto.
Num
obituário publicado esta semana no Guardian, sobre a morte simultânea do seu
primo britânico, era dito, com razão, que o desaparecimento do Estado Social não
significava o fim da despesa social, mas apenas um regresso aos seus antecessores,
a caridade e as políticas centradas no combate à pobreza extrema. À hora de
fecho desta edição, havia rumores crescentes de que o seu pai, a democracia
representativa, e a sua mãe, uma sociedade decente, ainda que mantivessem
sinais vitais, estavam numa situação clínica muito delicada e talvez não
recuperassem do abalo causado pela morte do filho dileto.
publicado no Expresso de 12 de Janeiro
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