O Rei-Economista
O primeiro relatório do Conselho de Finanças Públicas deu azo a
muitas leituras. Enquanto o Governo se apressou a sublinhar que se tratava de
um elogio ao ajustamento orçamental que estava a ser feito, a oposição afirmou
que era uma crítica à política do Executivo, que trabalhava com um cenário
macroeconómico demasiado optimista e desvalorizava os riscos do aumento do
desemprego na despesa. Estamos perante um daqueles casos em que Governo e
oposição têm razão – o relatório permite, de facto, várias interpretações –
mas, no essencial, os partidos falham o alvo.
O problema não é tanto as conclusões do relatório. Razoáveis,
aliás. A questão é a existência de um Conselho desta natureza, que não se inibe
de alicerçar os seus juízos num conjunto de princípios que são políticos, mas
que finge serem científicos. Vale a pena, a este propósito, recordar o contexto
em que surgiu o Conselho.
Durante a negociação do acordo para o Orçamento de 2011, por
imposição do PSD, foi criada uma entidade independente, composta por peritos
nacionais e internacionais (sic),
para analisar a sustentabilidade da política orçamental. A ideia, que tem o
fascínio inicial que todas as propostas que visam despolitizar as escolhas
sempre revelam, foi acolhida com inegável entusiasmo. Pelo caminho, ninguém se
preocupou com a desvalorização da actividade fiscalizadora da Assembleia da
República, onde, parece-me, ainda está representado o soberano, e com o facto
de já existir uma entidade com funções semelhantes – a Unidade Técnica de Apoio
Orçamental, que funciona junto da Comissão de Orçamento e que ganharia em ver a
sua capacidade reforçada.
Aberta a porta à ideia de que há uma verdade técnica sobre as
opções de política orçamental, o resultado era inevitável. O Conselho transformar-se-ia
num actor político, destinado a competir com Governo e partidos. Não
surpreende, por isso, que no relatório se apresente um conjunto de apreciações
sobre opções fiscais como se de evidências incontestáveis se tratassem ou que
sejam feitas considerações de natureza política sobre a natureza dos cortes a
efectuar na despesa. O problema é que está longe de existir consenso científico
sobre este como sobre todos os assuntos económicos. O que há é muita incerteza
que alimenta opções políticas plurais.
Este Conselho vem mostrar que um determinado tipo de economista foi
transformado no único indivíduo com real legitimidade para governar – como se,
em Economia, houvesse uma verdade que se revelasse aos indivíduos racionais,
desde que estejam de boa-fé e na posse dos instrumentos de cálculo adequados.
No fundo, o economista ocupa o lugar que Platão desejava para o filósofo –
“homens abençoados pela graça e semelhantes a deuses”. Como sabemos, o
Rei-Filósofo, movido por um conhecimento assente na relação dialéctica com os
princípios puros, está na génese dos ataques às sociedades abertas. Já agora,
convém recordar, foi esta visão da economia, alegadamente transformada numa
ciência exacta, que nos trouxe até aqui.
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