Viver abaixo das possibilidades
A austeridade para ser legítima precisa de ser coerente e equitativa. O que nos é proposto no orçamento revela incoerência e uma penalização dos funcionários públicos desadequada. O mesmo governo que em 2011 aplicou uma sobretaxa a todos os rendimentos do trabalho, escolheu um caminho diverso para 2012, concentrando os sacrifícios na administração pública. Como bem sublinhou o Presidente da República, este caminho encerra uma profunda iniquidade, mas revela também inconstância nas opções.
O Governo justificou a opção afirmando que os funcionários públicos ganham mais do que os trabalhadores do privado. A asserção tem, contudo, um problema: não toma em consideração a heterogeneidade das qualificações dos funcionários públicos.
Como bem demonstrou Rui Peres Jorge no blogue ‘Massa Monetária’ do Jornal de Negócios, existe um prémio salarial médio na administração pública face ao privado que esconde uma distribuição muito assimétrica. Comparativamente, o Estado remunera melhor as profissões menos qualificadas e menos produtivas e pior as mais qualificadas. De acordo com um estudo do Banco de Portugal, em 2005, um economista recebia, em média, menos 36% se trabalhasse no Estado, enquanto um jurista menos 26%. Se somarmos os cortes entretanto anunciados, hoje, para algumas profissões, ser funcionário público significa ganhar metade do privado. Consequência, comparado com o privado, os funcionários públicos mais qualificados vivem claramente abaixo das suas possibilidades.
A lógica perversa de compressão salarial na função pública vai produzir efeitos nefastos. Para além da desmotivação, os incentivos para a saída dos mais qualificados são tantos que a capacidade da administração para defender o interesse público ficará ainda mais fragilizada e a degradação progressiva dos serviços será inevitável. Não por acaso, esta semana já pairou a ameaça de uma debandada geral de médicos que estão em exclusividade no SNS.
Esta reforma do Estado irracional e feita ad hoc esconde objectivos políticos. Por um lado, é-nos dito que a via para a competitividade do país passa pelo empobrecimento generalizado na função pública; por outro, é recuperado, com trinta anos de atraso e particular intensidade, um conjunto de ideias muito populares nos meios académicos sobre as ‘falhas de Estado’ e a forma como os funcionários de topo, em última análise, se apropriam dos recursos públicos, promovendo uma lógica despesista extravagante. Só isso pode explicar a ambição de desmantelar os serviços públicos que está na base da acção deste Governo. Que Portugal tenha sido escolhido para laboratório de um radicalismo académico anquilosado é, se nada mais, assustador.
nota: apesar de ensinar numa universidade pública, não sou funcionário público e o contributo dessa actividade para o meu rendimento é pequeno, mas não tenho dúvidas que é preferível alargar a todos os rendimentos do trabalho e também do capital a tributação, em lugar de concentrar o esforço na função pública.
publicado no Expresso de 29 de Outubro
O Governo justificou a opção afirmando que os funcionários públicos ganham mais do que os trabalhadores do privado. A asserção tem, contudo, um problema: não toma em consideração a heterogeneidade das qualificações dos funcionários públicos.
Como bem demonstrou Rui Peres Jorge no blogue ‘Massa Monetária’ do Jornal de Negócios, existe um prémio salarial médio na administração pública face ao privado que esconde uma distribuição muito assimétrica. Comparativamente, o Estado remunera melhor as profissões menos qualificadas e menos produtivas e pior as mais qualificadas. De acordo com um estudo do Banco de Portugal, em 2005, um economista recebia, em média, menos 36% se trabalhasse no Estado, enquanto um jurista menos 26%. Se somarmos os cortes entretanto anunciados, hoje, para algumas profissões, ser funcionário público significa ganhar metade do privado. Consequência, comparado com o privado, os funcionários públicos mais qualificados vivem claramente abaixo das suas possibilidades.
A lógica perversa de compressão salarial na função pública vai produzir efeitos nefastos. Para além da desmotivação, os incentivos para a saída dos mais qualificados são tantos que a capacidade da administração para defender o interesse público ficará ainda mais fragilizada e a degradação progressiva dos serviços será inevitável. Não por acaso, esta semana já pairou a ameaça de uma debandada geral de médicos que estão em exclusividade no SNS.
Esta reforma do Estado irracional e feita ad hoc esconde objectivos políticos. Por um lado, é-nos dito que a via para a competitividade do país passa pelo empobrecimento generalizado na função pública; por outro, é recuperado, com trinta anos de atraso e particular intensidade, um conjunto de ideias muito populares nos meios académicos sobre as ‘falhas de Estado’ e a forma como os funcionários de topo, em última análise, se apropriam dos recursos públicos, promovendo uma lógica despesista extravagante. Só isso pode explicar a ambição de desmantelar os serviços públicos que está na base da acção deste Governo. Que Portugal tenha sido escolhido para laboratório de um radicalismo académico anquilosado é, se nada mais, assustador.
nota: apesar de ensinar numa universidade pública, não sou funcionário público e o contributo dessa actividade para o meu rendimento é pequeno, mas não tenho dúvidas que é preferível alargar a todos os rendimentos do trabalho e também do capital a tributação, em lugar de concentrar o esforço na função pública.
publicado no Expresso de 29 de Outubro
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