terça-feira, abril 20, 2010

Vai trabalhar, malandro

Durante três séculos, as ‘workhouses’ foram o instrumento central da resposta à pobreza no Reino Unido.

Com origem nas ‘poor laws' de 1601, eram instituições em que os pobres trocavam protecção por trabalho, simbolizando o apogeu da protecção social como controlo social e higiénico dos pobres. O regime das ‘workhouses' era conhecido pelo seu carácter punitivo, que tinha como objectivo desencorajar que os residentes as vissem como alternativa ao trabalho. Em 1930, o Governo britânico aboliu as ‘worhouses'. A decisão é usualmente vista como um marco na generalização dos direitos sociais de cidadania no mundo ocidental. Em Portugal, em 2010, o novo líder do maior partido da oposição escolheu como aspecto central da sua plataforma política o "tributo solidário", uma medida que, a ser levada a sério, reenvia-nos para o universo simbólico das ‘workhouses'.

Na formulação de Passos Coelho, com o tributo solidário "quem é ajudado pelo Estado deve retribuir essa benesse em trabalho social". A obrigação recai sobre os beneficiários do RSI e do subsídio de desemprego. A proposta consegue ser, ao mesmo tempo, politicamente errada e revelar desconhecimento sobre o funcionamento das medidas existentes. No fundo, o tributo solidário tem apenas um objectivo: explorar politicamente o ressentimento face aos beneficiários de prestações sociais.

A proposta ignora que os beneficiários de prestações não-contributivas já estão sujeitos a obrigações. Por exemplo, para ter direito ao RSI é preciso aceitar um programa de inserção que inclui o titular da prestação e o seu agregado familiar. Também para os desempregados carenciados existem, já há muito tempo, os contratos emprego-inserção (antigos POC), que assentam em tarefas socialmente úteis (por exemplo, em hospitais, nas autarquias ou nas escolas). Mas uma coisa é activar mais os beneficiários de prestações não-contributivas, outra, bem diferente, é transformar beneficiários de subsídio de desemprego num novo "exército industrial de reserva". O subsídio de desemprego é um seguro social. Quem o recebe é porque formou o direito. Se, por absurdo, colocássemos os beneficiários do subsídio de desemprego a prestar "tributos solidários" estaríamos também a retirar valor ao trabalho. Em Portugal, muito do emprego nos serviços é mal remunerado e tem funções sociais. Caso os beneficiários de prestações sociais competissem por essas funções, provocar-se-ia uma enorme pressão sobre os salários de muitos portugueses, colocando em risco os seus postos de trabalho.

No fim, não deixa de ser politicamente revelador que, numa altura em que o desemprego se encontra acima dos 10%, se sugira que a indolência dos desempregados também é responsável pelo que se passa no mercado de trabalho. Que se utilize a expressão solidário a este propósito deve ser visto como um exercício típico de novilíngua.

publicado hoje no Diário Económico.