Um projeto inaufragável
A resposta que a Europa tem
dado à crise da zona euro tem sido fantástica, da mesma forma que o Titanic era
um navio extraordinário. Na altura do embarque gerou entusiasmo, mas sabemos
para onde se dirigia. Um pouco por toda a Europa, continua-se a agir como se o
euro fosse ‘inaufragável’, sendo certo que temos boas razões para estarmos
preocupados.
Com o resgate à Espanha fica
uma vez mais demonstrado que o essencial do problema não é nem espanhol, nem
irlandês, nem português, nem grego. O problema é do euro e só será ultrapassado
quando se alterar a arquitetura institucional da moeda única. Até lá, estaremos
condenados a que cada solução de emergência se revele temporária (os mercados
reagem mal e a notação cai) e que surjam novas contrariedades (à Espanha,
seguir-se-á a Itália e por aí fora).
Afirmar que o essencial é a
arquitetura da zona euro não significa que Grécia, Irlanda, Portugal e Espanha
não têm dificuldades nas suas economias. Pelo contrário: têm problemas bem
profundos e distintos. Acontece que as soluções encontradas para responder à
crise da dívida soberana não só não contribuem para que os países sob resgate
superem os seus bloqueios, como têm mesmo o condão de os aprofundar – ao mesmo
tempo que produzem um efeito de contágio que não se sabe onde poderá parar. Se
o caminho que tem sido seguido nos dois últimos anos for prosseguido, não faltará
muito tempo até escutarmos Merkel a declarar “nós não somos a França”.
A este propósito, vale a
pena recuperar o seminal The
World in Depression 1929-1939 de Charles Kindleberger,
publicado há quarenta anos. Então, o historiador económico identificava três
mecanismos que transformaram uma crise financeira com epicentro bem definido
numa grande depressão. Os paralelismos com os nossos dias são evidentes.
Em primeiro lugar, o pânico. Para
Kindleberger os surtos de pânico repentinos são uma condição dos mercados
financeiros e geram comportamentos extremos. A sua segunda asserção prende-se
com o poder de contágio. A crise de 1931 começou num centro financeiro pequeno
– Viena – mas, ao não ser estancada, saltou até Berlim, desenvolvendo
metástases a um ritmo imparável. Do mesmo modo que a Áustria constituiu uma
ameaça letal em 1931, também a Grécia, na ausência de intervenção eficaz,
tornou-se num perigoso detonador. Finalmente, as raízes da depressão
prenderam-se com a ausência de uma intervenção com capacidade hegemónica mas
sensível aos interesses dos Estados mais pequenos e empenhada em estabilizar os
fluxos financeiros, funcionando como emprestador de último recurso. Nos anos
trinta, a Grã-Bretanha já não tinha essa capacidade e os EUA não o quiseram
fazer, enquanto a Europa, saída da 1ª Guerra, estava longe de ter um poder
centralizado. Hoje também se assiste a esta reação inerte.
Presenciarmos passivamente,
na Europa, a repetição dos erros dessa década, enquanto nos entretemos com uma
fustigação moral e assistimos a uma discussão sobre culpas é assustador e
alarmante. Mas, no fundo, revela a mesma convicção quase-teológica em que
assentou a construção do Titanic.
publicado no Expresso de 16 de Junho
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