Virgens ofendidas
Nas últimas semanas, algumas vozes vieram dizer o óbvio: em Portugal assiste-se a um processo de judicialização da actividade política.
Não começou ontem, mas, na verdade, tem-se intensificado, muito por força duma coligação perversa e indomável entre mau jornalismo e péssimas investigações. Como seria de esperar, logo se seguiu um coro de virgens ofendidas, com os costumeiros "ai, ai, ai que não é assim".
Na verdade, não só é assim, como os próprios magistrados reconhecem que tem de ser assim. A judicialização da vida democrática e, logo, da actividade política é, aliás, vista pelo poder judicial como uma tendência inexorável das nossas sociedades. A este propósito, vale a pena recuperar o texto de apresentação do congresso dos juízes portugueses, realizado em finais de 2008, no qual se propõe uma discussão sob o lema: "O Poder Judicial numa Democracia Descontente".
O pressuposto de que partem os magistrados é que "o poder judicial nas democracias descontentes do início do século XXI corre o risco de se vir a assumir-se como verdadeiro poder" (sic). Não há margem para dúvidas: é, de facto, de um risco que falamos. Depois, uma interrogação: "se o século XIX foi o século do poder legislativo e o século XX o do poder executivo, poderá o século XXI vir a ser o século do poder judicial?"
No dia-a-dia temos tido sinais visíveis da vontade de poder dos magistrados, mas ficamos a saber também que isso é feito de modo reflectido e como resposta a uma convocatória "do poder judicial para um outro exercício da democracia". Aliás, os magistrados não o escondem, quando se questionam se "estaremos perante uma transferência de legitimidade dos poderes legislativo e executivo para o judicial?". Claro que esta alteração na "narrativa" produz efeitos: não só "tem de explicar o papel dos vários poderes do Estado Democrático de um outro modo", como "densifica a dimensão política" do judiciário. Como seria de esperar, tudo tende a acabar em reivindicações sobre a carreira: "o estatuto dos juízes deixa para a lei ordinária um largo campo de regulamentação".
O que nos é sugerido é não apenas uma nova centralidade para o poder judicial, como também uma ofensiva que passa pela diminuição das esferas de autonomia dos poderes políticos. O que nos lembra que já não estamos apenas numa fase de tensão latente. Se a saída para a "democracia descontente" em que nos encontramos passar por uma transferência da legitimidade de poderes com legitimidade eleitoral (como são o legislativo e o executivo), para um poder cuja legitimidade radica em mecanismos fracamente sindicáveis pelos cidadãos, há boas razões para termos medo. É um sintoma de que está a germinar uma visão em que o poder judicial já não quer ser independente do poder político, mas sim ver este subjugado ao seu poder.
publicado no Diário Económico.
Não começou ontem, mas, na verdade, tem-se intensificado, muito por força duma coligação perversa e indomável entre mau jornalismo e péssimas investigações. Como seria de esperar, logo se seguiu um coro de virgens ofendidas, com os costumeiros "ai, ai, ai que não é assim".
Na verdade, não só é assim, como os próprios magistrados reconhecem que tem de ser assim. A judicialização da vida democrática e, logo, da actividade política é, aliás, vista pelo poder judicial como uma tendência inexorável das nossas sociedades. A este propósito, vale a pena recuperar o texto de apresentação do congresso dos juízes portugueses, realizado em finais de 2008, no qual se propõe uma discussão sob o lema: "O Poder Judicial numa Democracia Descontente".
O pressuposto de que partem os magistrados é que "o poder judicial nas democracias descontentes do início do século XXI corre o risco de se vir a assumir-se como verdadeiro poder" (sic). Não há margem para dúvidas: é, de facto, de um risco que falamos. Depois, uma interrogação: "se o século XIX foi o século do poder legislativo e o século XX o do poder executivo, poderá o século XXI vir a ser o século do poder judicial?"
No dia-a-dia temos tido sinais visíveis da vontade de poder dos magistrados, mas ficamos a saber também que isso é feito de modo reflectido e como resposta a uma convocatória "do poder judicial para um outro exercício da democracia". Aliás, os magistrados não o escondem, quando se questionam se "estaremos perante uma transferência de legitimidade dos poderes legislativo e executivo para o judicial?". Claro que esta alteração na "narrativa" produz efeitos: não só "tem de explicar o papel dos vários poderes do Estado Democrático de um outro modo", como "densifica a dimensão política" do judiciário. Como seria de esperar, tudo tende a acabar em reivindicações sobre a carreira: "o estatuto dos juízes deixa para a lei ordinária um largo campo de regulamentação".
O que nos é sugerido é não apenas uma nova centralidade para o poder judicial, como também uma ofensiva que passa pela diminuição das esferas de autonomia dos poderes políticos. O que nos lembra que já não estamos apenas numa fase de tensão latente. Se a saída para a "democracia descontente" em que nos encontramos passar por uma transferência da legitimidade de poderes com legitimidade eleitoral (como são o legislativo e o executivo), para um poder cuja legitimidade radica em mecanismos fracamente sindicáveis pelos cidadãos, há boas razões para termos medo. É um sintoma de que está a germinar uma visão em que o poder judicial já não quer ser independente do poder político, mas sim ver este subjugado ao seu poder.
publicado no Diário Económico.
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