Três ilusões e uma tragédia
Há um antes e um
depois de Gaspar. Com o ex-ministro das Finanças, o Governo tinha uma
estratégia – desastrosa, mas ainda assim uma estratégia; com a dupla
Passos/Portas aos comandos, o Governo passou a mover-se apenas pela tática. Não
por acaso, com este novo contexto as coisas aparentam funcionar melhor. Mas é
apenas uma aparência e tem explicação: o reino da tática é o terreno onde primeiro-ministro
e vice se sentem confortáveis. O problema é que, com o predomínio da tática,
estão a alimentar-se três ilusões que resultarão numa tragédia.
A primeira das quais
é a de que, terminado o programa de assistência financeira, recuperaremos a soberania.
Hoje não sabemos quase nada sobre o que é um “programa cautelar” mas o que
sabemos – até por aquilo que se passou com as pré-negociações com a Irlanda – é
que ao pós-troika não corresponde
autonomia política. Não apenas porque a nossa capacidade de financiamento
continuará dependente de auxílio externo mas, essencialmente, porque o nível de
intromissão nas opções do nosso Governo – seja ele qual for – permanecerá muito
significativo. A Irlanda não quis um programa cautelar porque não aceitou que
Comissão e BCE definissem qual a estratégia que o Governo irlandês deveria
seguir. Bem pode Paulo Portas inventar um relógio em contagem decrescente que o
que nos espera depois de junho é menos diferente do que se quer fazer crer.
Igualmente
perniciosa é a sucessão de avaliações que sugere que o programa português está
a funcionar. O sucesso português é um artifício necessário para a troika que não quer e não pode aceitar
um falhanço. O problema é que a estratégia de austeridade expansionista
protagonizada por Gaspar falhou – o que, aliás, foi reconhecido na carta de
demissão – e, entretanto, o Governo alterna momentos em que finge que mudou de
rumo (aposta no crescimento) com outros em que prossegue a mesma estratégia (OE2014).
Os factos são, contudo, cruéis: em três anos o PIB recuou 8 mil milhões de
euros; a dívida não parou de crescer; os juros não baixam e a taxa de
desemprego disparou enquanto as desigualdades se agudizam.
Finalmente a ilusão
de que o Governo age obrigado pela troika,
procurando resistir às suas imposições. Nada de mais falso: a troika foi sempre o que o Governo quis
que ela fosse e a autonomia estratégica entre as duas partes é escassa. Pelo
contrário, o Governo usa a troika
como mecanismo de amplificação selectiva das suas opções. O triste espectáculo
do presidente da Comissão, o português José Manuel Barroso, a insurgir-se
contra o Tribunal Constitucional ou Draghi a invocar os riscos orçamentais
resultantes dos acórdãos estão aí para mostrar como a troika é uma extensão do Governo e o Governo uma extensão da troika.
Estas três ilusões
confluem para uma enorme tragédia. Não apenas nada de essencial mudará depois
do verão, como o prosseguimento do caminho de devastação seguido nos últimos
anos será uma inevitabilidade, reforçado por uma coligação entre vontade
política nacional com constrangimentos europeus que não se vê como possam ser
superados.
publicado no Expresso de 28 de Dezembro
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