segunda-feira, outubro 14, 2013

Sinais de mudança?


Os resultados das autárquicas são claros: os partidos do Governo tiveram uma derrota colossal, com perdas de votos brutais. Comparado com as autárquicas anteriores, PSD e CDS juntos caíram 644 mil votos (uma variação de -28%); se a comparação for feita com as legislativas de há dois anos, o cenário é ainda mais negativo (tiveram menos 1 milhão e 146 mil votos, o que representa uma variação de -41%). Olhando para estes números, os sinais de que estamos perante uma penalização eleitoral do Governo são evidentes; contudo, não é claro que a esta penalização correspondam ganhos diretos da oposição.
Há indícios de que o eleitorado está a querer romper com a trajetória de alternância que tem caracterizado a democracia portuguesa desde a transição para a democracia e, em particular, desde a adesão europeia. Um pouco à imagem do que está a acontecer um pouco por toda a Europa do sul, se há sinal de mudança estrutural nestas autárquicas é o de um lento declínio do bipartidarismo.
Ao longo da campanha foi salientado o crescimento muito significativo dos candidatos independentes. Dissidentes ou não de partidos pouco importa, serviram de porto de abrigo para muito descontentamento face aos aparelhos partidários. Nestas eleições,  conquistaram em conjunto 344 mil votos (mais 120 mil do que há 4 anos). Sintomaticamente, a CDU – uma formação política que se encontra na posição singular de ser, ao mesmo tempo, institucional e anti-sistémica – foi a única a crescer em número de votos. No entanto, o elemento de maior surpresa talvez seja mesmo a variação dos votos nulos e brancos: num contexto em que a abstenção sobe, estes passaram de 3% para 7% dos votos expressos. Estamos perante um indicador de descontentamento mobilizado. 
É um facto que os resultados do PS são impressivos. Conquistou 243 mil votos face às últimas legislativas e tem um número de presidências de câmara sem paralelo. Contudo, perde 274 mil votos comparado com as autárquicas de 2009 e revela dificuldades de crescimento nos grandes centros urbanos (com exceção de Lisboa). Esse não é, no entanto, o sinal mais forte de que alguma coisa está a mudar. Convém ter presente que, à primeira oportunidade, os fatores que devastaram PSD e CDS ressurgirão para fazer o mesmo ao PS. 
Este quadro eleitoral devia fazer soar todas as campainhas de alerta. Mas aparentemente é como se nada se passasse. Com doses sempre redobradas de austeridade, com a percepção (errada) de que a corrupção é um fenómeno crescente e que explica a atual crise, com o aparelhismo a tomar conta dos partidos, o terreno está fértil para o surgimento de algo novo e que não será necessariamente bom. Aliás, se olharmos para os nossos vizinhos da Europa do sul só temos boas razões para nos assustarmos com as novas formações partidárias. Para piorar as coisas, imaginem só como todo este contexto se agudizará quando o PS não tiver alternativa (porque não terá mesmo) a comprometer-se com um novo resgate ou, se preferirem eufemismos, com um programa cautelar. Estaremos cá todos para ver a onda de mudança. Não vai ser bonito.
publicado no Expresso de 5 de Outubro

A nacionalização das autárquicas


Quem tenha acompanhado a cobertura televisiva da campanha autárquica ficou com a sensação de que os cinco líderes dos partidos com representação parlamentar eram, simultaneamente, candidatos à presidência de 308 municípios. Este facto resultou, em importante medida, de uma decisão obtusa da Comissão Nacional de Eleições que contribuiu para nacionalizar as autárquicas e não deixará de ter efeitos no domingo.
Num contexto como o que vivemos, em que a crise económica e social dá sinais de se estar a transformar numa crise institucional e de regime, a diluição nacional de centenas de disputas locais é, em si, factor de empobrecimento. O poder local é uma malha de segurança do regime democrático, não apenas por força da relação de proximidade que aí se estabelece entre quem é eleito e quem elege mas também porque a larguíssima maioria dos portugueses que tem participação política activa fá-lo ao nível local – em Juntas de Freguesia, Assembleias Municipais ou Câmaras. Objectivamente, assistiu-se nesta campanha a uma desvalorização do papel desempenhado na preservação do regime por todos estes cidadãos.
Mas se, por norma, as leituras políticas nacionais das autárquicas são difíceis, neste domingo estaremos face a uma situação paradoxal que representa um risco acrescido.
Se recuarmos um par de meses, a discussão política prendia-se de facto com as eleições locais. Então, os temas eram a limitação de mandatos; a forma como os candidatos do PSD procuravam esconder a sua filiação e ligação ao Governo; ou a ausência de candidatos com projecção nacional no PS. Entretanto, a cobertura mediática nacionalizou as eleições e nas últimas duas semanas discutiram-se as dissonâncias nos discursos do primeiro-ministro e do vice, a iminência de um 2º resgate e o regresso da troika.
Esta mudança de enfoque temático teve consequências. O processo de nacionalização das autárquicas, ao oferecer mediaticamente uma grelha de leitura política nacional, parece fomentar o voto de protesto. Se o tema é a governação e se o primeiro-ministro surge, um sem-número de vezes, a aproveitar palcos locais para dirimir os conflitos internos ao conselho de ministros ou para tentar encontrar um bode expiatório para o falhanço da sua estratégia, é natural que no dia 29 se assista a um referendo ao Governo.
A questão é que pode haver uma contradição entre a grelha de leitura política que resulta da cobertura mediática e o que de facto vai ocorrer quando os portugueses votarem. É de esperar muito voto de protesto, mas é também muito provável que este coexista com dinâmicas locais, pouco visíveis e relativamente imunes ao descontentamento com a governação. Se a isto somarmos a incerteza que decorrerá da existência de um número significativo de independentes com possibilidades de vitória, bem como do surpreendente crescimento do PCP a sul do Tejo, pode bem acontecer que, quando se for procurar o esperado crescimento eleitoral do maior partido da oposição à custa da queda dos partidos de Governo, ele não apareça.
publicado no Expresso de 29 de Setembro

E serviu para quê?


Chega a ser comovente assistir aos apelos compungidos dos porta-vozes da maioria para que a troika mude. Sabemos que a memória é curta, mas não curta o suficiente para esquecer que, há pouco mais de dois anos, os mesmíssimos protagonistas rasgavam as suas vestes a caminho do aeroporto para receberem de braços abertos um programa redentor que transformaria estruturalmente o país. Os resultados estão agora à vista.
Há, desde logo, uma enorme diferença entre o que então nos era dito e o que agora é dito sobre o que então nos era dito. Parece confuso mas infelizmente não é.
O memorando de ajustamento – o tal programa que Passos Coelho, com a impreparação que o caracteriza, considerava estar aquém do programa do PSD – propunha-se corrigir os nossos desequilíbrios macroeconómicos e recuperar a credibilidade externa do país. De acordo com o memorando, em 2014 a dívida estaria a baixar, o défice ficaria nos 2,3%, o desemprego seria de 12,5% e a economia recuaria 0,3% ao longo da vigência do programa. É penoso atualizar estes valores.
O caminho para a salvação era linear. Uma consolidação orçamental feita rapidamente e com cortes abruptos na despesa teria um efeito expansionista, na medida em que os efeitos positivos gerados pela determinação política revelada por um Governo capaz de cortar serviriam para contrariar o impacto recessivo do frontloading. Portugal foi apenas mais uma cobaia numa longa série de experiências deste género condenadas ao fracasso.
Há uma explicação menos delirante para a opção tomada. Para  os “austeritários realistas” (bem sei que é uma contradição nos termos), a estratégia orçamental estava condenada ao fracasso, mas o ajustamento tinha de ser feito para convencer os mercados. O que importava era recuperar a credibilidade, mesmo que esta dependesse da credulidade externa. Como se vê pelos anúncios de degradação do rating da República, não é possível ficcionar a realidade durante muito tempo.
Agora, quando até os autores intelectuais e materiais da estratégia procuram lavar as mãos e defendem – como fez o FMI – que a austeridade demasiado rápida pode ser autodestrutiva e que a confiança não desempenhou um papel relevante, há uma pergunta que sobra: toda esta destruição serviu exatamente para quê?
Há a este propósito uma recomendação plena de cinismo que deve ser recordada: “nunca se deve desperdiçar uma boa crise”. Esta crise, não tendo contribuído para equilibrar as contas públicas, para reformar a nossa economia política ou para corrigir desigualdades nos vários mercados, tem sido instrumental.
No fundo, foi uma oportunidade para alterar as relações de poder na sociedade portuguesa, favorecendo uns e enfraquecendo outros. Sem a crise como pretexto não teria seria possível implementar uma agenda ideológica que desequilibrasse as relações laborais a favor dos empregadores; que, invocando a liberdade como pretexto, degradasse a escola pública; que afastasse as classes médias do Estado Social e que fizesse do empobrecimento o objectivo central de todas as políticas.
 publicado no Expresso de 21 de Setembro

A grande ilusão


Há um par de meses, o risco de um segundo resgate foi substituído por um “programa cautelar”, a conflitualidade política trocada por apelos ao consenso e a espiral recessiva deu lugar a um “novo ciclo” de crescimento e investimento. Este movimento que aparenta ser quase-tectónico não passa, contudo, de uma grande ilusão. Não é surpreendente que assim seja: com eleições à porta e com o ciclo legislativo a meio, o Governo precisa de encontrar uma narrativa mobilizadora e, no essencial, agregadora para o que resta do programa de assistência. O que surpreende é que essa grande ilusão não parece ser apenas para consumo no país. Há sinais preocupantes de que é também para consumo da troika e, pasme-se até, do próprio Conselho de Ministros.
Não só não há nada de novo no ciclo que vivemos como as dificuldades que existiam no que se pode chamar de fase “Gaspar dos últimos dias” continuam todas presentes, mesmo que tenham sido escondidas debaixo da mesa do Conselho de Ministros. O adiamento da 8ª avaliação – uma espécie de brinde autárquico – pode ter suspendido os problemas mas não os fez desaparecer. Bem pelo contrário, como aliás se tem visto pela fraca receptividade que o ímpeto negociador de Paulo Portas tem encontrado junto da troika.
Desde logo porque, ao contrário da ilusão que o próprio Governo alimenta, não há nenhum debate para ser feito em torno da reforma do Estado. Desde o fim da 7ª avaliação que as decisões estão tomadas e os cortes fixados e quantificados. A menos que ocorra um recuo, o Governo comprometeu-se junto de Draghi, Barroso e Lagarde com cortes acima de 4 mil milhões em rubricas específicas. Debater agora serviria apenas para legitimar os cortes já consagrados e que, sendo altamente recessivos, inviabilizam qualquer “novo ciclo”.
Da mesma forma, os problemas políticos que levaram à saída de Gaspar mantêm-se: da incapacidade de apresentar medidas conformes com a Constituição às divergências estratégicas no seio do Governo (que tiveram esta semana mais um episódio com os discursos dissonantes de Passos e Portas em torno da revisão das metas do défice), culminando na própria inviabilidade estrutural do programa de assistência.
Mas nada como um exemplo concreto para se perceber até onde chega o estado de ilusão em que vivemos. Pensemos na convergência entre o regime geral da segurança social e a Caixa Geral de Aposentações apresentada esta semana. A despesa da CGA é cerca de 7 mil milhões de euros anos e Portugal acordou um corte de 700 milhões (cerca de 10%). Por outro lado, já sabemos que todas as pensões inferiores a 600 euros ficam isentas, que o patamar de isenção aumenta com a idade e que não haverá cortes acima de 10%. Ao mesmo tempo, na despesa total da CGA estão incluídos beneficiários de fundos de pensões entretanto integrados que formaram pensões com regras distintas e nada se sabe sobre que tipo de cortes terão. É uma questão de fazer as contas para se perceber que os cortes anunciados ficarão bem longe da meta acordada.
A pergunta é por isso simples: o Governo está a iludir-nos a todos nós, a si próprio ou à troika?
 publicado no Expresso de 14 de Setembro

Uma culpa constitucional


Há uns meses, um documento da J. P. Morgan sobre o ajustamento na zona euro não hesitava em sublinhar que os sistemas políticos nos países da periferia foram “estabelecidos na sequência das ditaduras e definidos por essa experiência. As constituições tendem a ter uma influência socialista forte, refletindo a força política que os partidos de esquerda conquistaram após a derrota do fascismo". Para depois concluir, com uma candura assustadora, que estes países tiveram um sucesso apenas parcial nas suas reformas orçamental e económica, sendo apontados, no exemplo português, os “constrangimentos” impostos  pela Constituição, que, entre outras malfeitorias, protege os direitos laborais e concede o direito a protestar caso mudanças indesejadas ocorram no status quo político (sic).
É ao mesmo tempo surpreendente que haja quem se dedique a análises que assentam na descoberta peregrina de que os momentos fundacionais dos regimes são histórica e politicamente contingentes (será possível compreender a Constituição norte-americana sem ter em conta a experiência colonial britânica?) e que faça uma leitura pueril dos bloqueios económicos e financeiros que os países da zona euro enfrentam. Poderia ser apenas enternecedor mas, como se vê pela discussão que continua a decorrer em Portugal, são argumentos que devem mesmo ser levados a sério.
Na verdade, as sete revisões constitucionais ocorridas desde a transição para a democracia já expurgaram a influência material socialista do texto fundamental e não há nenhum bloqueio sério à reforma do nosso Estado Social alicerçado na Constituição, como aliás é provado pela jurisprudência do Tribunal. Estamos, na verdade, perante desculpas que servem para desresponsabilizar o Governo e a Europa pela sua negação da natureza da crise e incompetência para encontrar respostas eficazes aos problemas que enfrentamos.
Se nos cingirmos ao conjunto de acórdãos do Tribunal Constitucional que declararam a inconstitucionalidade de medidas apresentadas pelo Governo, a questão é ainda mais clara. Os chumbos do TC não se devem a nenhuma pretensa idiossincrasia socialista da Constituição, pelo contrário, radicam em princípios que fazem parte de todas as constituições das democracias ocidentais – igualdade, proporcionalidade e segurança jurídica.
Numa altura em que se voltou a falar de um novo resgate, e foram afastados os eufemismos utilizados durante um par de meses (“pós-troika”; programa cautelar), não deixa de ser revelador que se procure fazer da Constituição ou, na versão alucinada do primeiro-ministro, da falta de “bom-senso” dos juízes do TC, a causa para o falhanço do programa de ajustamento. Infelizmente, o problema é sempre o mesmo: estamos perante uma estratégia que não funciona nem pode funcionar. A Constituição não passa do último dos bodes expiatórios mobilizados pelos arquitetos intelectuais da estratégia austeritária em curso (as J.P. Morgan deste mundo) e pelos seus diligentes implementadores, do inenarrável Dijsselbloem no Eurogrupo ao primeiro-ministro que nos coube em sorte.

publicado no Expresso de 7 de Setembro