Quando o centro vira à esquerda
Quer seja um democrata ou um republicano a tomar posse como presidente em 2009, o centro de gravidade da política nos EUA encontrar-se-á bem mais à esquerda do que estava há uma década. O contributo de George W. Bush para esta mudança é negligenciável. Afinal, ela é resultado de mudanças políticas e económicas de longo prazo, que afectam todos os países desenvolvidos. Assim começa um artigo recente do publicista norte-americano Michael Lind no “Financial Times” (“The centre-ground’s shift to the left”, 27/11). Centrado nas especifidades da política norte-americana, o argumento é ainda assim válido para o conjunto das democracias ocidentais – até porque, mais cedo ou mais tarde, os debates norte-americanos tendem a chegar à Europa. De acordo com Lind, a história política desde os anos 30 com o New Deal, é passível de ser dividida em três grandes ciclos, sendo que, em cada um deles, a alternativa política vencedora é aquela que, controlando o centro, formata a gramática do debate político. Quem ocupa essa posição central é que foi variando.
O primeiro ciclo longo vai de 1932 até 1968 e caracterizou-se pelo apelo político dos mecanismos de regulação estatais e pelo papel quase incontestado do Estado Providência. Durante este período, o liberalismo económico encontrava-se numa posição fragilizada e, à direita do espectro político, só foram competitivos os conservadores defensores do papel do Estado (por exemplo, Eisenhower nos EUA e os democrata-cristãos na Europa). O centro de gravidade da política estava à esquerda.
O segundo ciclo longo vai de 1968 até 2004 e caracterizou-se por uma viragem à direita, na qual o intervencionismo estatal na economia regrediu e a liberalização dos mercados passou a ser vista como a panaceia para todos os problemas da economia e da sociedade. Durante este período, o centro de gravidade da política estava à direita e mesmo os partidos de esquerda adoptaram políticas neo-liberais – sendo que os eleitoralmente mais competitivos foram aqueles que se colocaram debaixo da etiqueta “terceira-via”.
Acontece que este ciclo chegou ao fim e as duas grandes tendências agora dominantes são o colapso do neo-liberalismo como força política e a ascensão do proteccionismo económico. É neste contexto que, ainda de acordo com Lind, o que antes era a esquerda – a defesa do Estado Providência num contexto de economia de mercado – é de novo o centro. Esta tendência surge, aparentemente, como a melhor forma das democracias ocidentais resistirem simultaneamente ao proteccionismo populista (uma ameaça que chega de vários quadrantes políticos) e ao neo-liberalismo desregulador.
É neste contexto que Lind identifica uma mudança no discurso daqueles que serão os mais proeminentes centristas do novo ciclo apenas iniciado. Enquanto durante o período em que o centro gravitacional esteve à direita, a linha dominante era: “temos de reduzir as regalias das classes médias de modo a promover a competitividade num mercado livre globalizado”, agora, de modo a proteger o mercado livre globalizado dos populistas que cavalgam as ansiedades das classes médias, a linha ganhadora será: “temos de expandir o Estado Providência para as classes médias”.
No fundo, podemos estar a assistir a um regresso à esquerda do centro gravitacional da política. De novo, é o desenvolvimento da protecção social para as classes médias (ao garantir a segurança económica dos eleitores centrais), o melhor mecanismo para, ao mesmo tempo que reduz o apelo populista assente em todas as formas de estatismo radical, alargar a base social e política de economias de mercado abertas e competitivas globalmente.
Lind termina afirmando que ouviremos muito mais este discurso numa altura em que os políticos procurarão ocupar aquilo que será o centro nos próximos anos. O que aliás recorda que, no contexto nacional, Mário Soares – que tende a ter as intuições certas – interpreta bem os sinais do tempo, quando, em artigo na “Visão”, sintomaticamente intitulado, “o que aí vem”, escreveu, “há que acautelar o desgaste social e retomar o diálogo sindical”. Ou seja, trazer de novo para o centro princípios da social democracia tradicional e, acrescentaria, recordar que o Estado Providência serviu para combater a pobreza mas, acima de tudo, para integrar politicamente as classes médias, cooptando-as para o projecto democrata e liberal.
publicado no Diário Económico.
O primeiro ciclo longo vai de 1932 até 1968 e caracterizou-se pelo apelo político dos mecanismos de regulação estatais e pelo papel quase incontestado do Estado Providência. Durante este período, o liberalismo económico encontrava-se numa posição fragilizada e, à direita do espectro político, só foram competitivos os conservadores defensores do papel do Estado (por exemplo, Eisenhower nos EUA e os democrata-cristãos na Europa). O centro de gravidade da política estava à esquerda.
O segundo ciclo longo vai de 1968 até 2004 e caracterizou-se por uma viragem à direita, na qual o intervencionismo estatal na economia regrediu e a liberalização dos mercados passou a ser vista como a panaceia para todos os problemas da economia e da sociedade. Durante este período, o centro de gravidade da política estava à direita e mesmo os partidos de esquerda adoptaram políticas neo-liberais – sendo que os eleitoralmente mais competitivos foram aqueles que se colocaram debaixo da etiqueta “terceira-via”.
Acontece que este ciclo chegou ao fim e as duas grandes tendências agora dominantes são o colapso do neo-liberalismo como força política e a ascensão do proteccionismo económico. É neste contexto que, ainda de acordo com Lind, o que antes era a esquerda – a defesa do Estado Providência num contexto de economia de mercado – é de novo o centro. Esta tendência surge, aparentemente, como a melhor forma das democracias ocidentais resistirem simultaneamente ao proteccionismo populista (uma ameaça que chega de vários quadrantes políticos) e ao neo-liberalismo desregulador.
É neste contexto que Lind identifica uma mudança no discurso daqueles que serão os mais proeminentes centristas do novo ciclo apenas iniciado. Enquanto durante o período em que o centro gravitacional esteve à direita, a linha dominante era: “temos de reduzir as regalias das classes médias de modo a promover a competitividade num mercado livre globalizado”, agora, de modo a proteger o mercado livre globalizado dos populistas que cavalgam as ansiedades das classes médias, a linha ganhadora será: “temos de expandir o Estado Providência para as classes médias”.
No fundo, podemos estar a assistir a um regresso à esquerda do centro gravitacional da política. De novo, é o desenvolvimento da protecção social para as classes médias (ao garantir a segurança económica dos eleitores centrais), o melhor mecanismo para, ao mesmo tempo que reduz o apelo populista assente em todas as formas de estatismo radical, alargar a base social e política de economias de mercado abertas e competitivas globalmente.
Lind termina afirmando que ouviremos muito mais este discurso numa altura em que os políticos procurarão ocupar aquilo que será o centro nos próximos anos. O que aliás recorda que, no contexto nacional, Mário Soares – que tende a ter as intuições certas – interpreta bem os sinais do tempo, quando, em artigo na “Visão”, sintomaticamente intitulado, “o que aí vem”, escreveu, “há que acautelar o desgaste social e retomar o diálogo sindical”. Ou seja, trazer de novo para o centro princípios da social democracia tradicional e, acrescentaria, recordar que o Estado Providência serviu para combater a pobreza mas, acima de tudo, para integrar politicamente as classes médias, cooptando-as para o projecto democrata e liberal.
publicado no Diário Económico.